domingo, 25 de fevereiro de 2018


Kasbahs, a Poesia da Terra

  
Marrocos e as suas incríveis Kasbahs há muito tempo que alimentavam os nossos projectos de viagem. Rumámos no seu encalço, até ao sul do país, animados com a perspectiva de, finalmente, podermos admirar essas enigmáticas casas acasteladas, construídas em adobe, da cor da terra como se esta se tivesse erguido num devaneio poético. Que segredos encerram? Certamente memórias das emoções, dos dramas familiares, das vidas de sobrevivência numa terra onde o sol é implacável. 
Partindo de Marraquexe onde alugámos carro depois de um regateio apaixonado, aventurámo-nos pela estrada que nos levaria por Ouarzazate até Zagora, passando depois a Tinfou e Merzouga, bem próximas da fronteira argelina e já às portas do deserto, para voltarmos novamente a Ouarzazate com Erfoud pelo caminho. Um percurso quase circular, onde as Kasbahs nos vão surpreendendo ao virar a curva da estrada ou então sobressaindo por entre o casario.
Depois da travessia lenta das montanhas do Atlas, o nosso pasmo inicia-se com o admirável   Aït Ben Haddou. Esta Ksar, composta por várias Kasbahs circundadas por muralha, empoleiradas numa colina com as palmeiras e o rio a seus pés, é simplesmente deslumbrante. Começámos aqui a aprender um pouco sobre a vida dos antigos berberes. Que construíram estas casas tipo fortalezas, para se abrigarem não só de um clima demasiado agreste, como também para se defenderem dos nómadas do deserto que, no final das colheitas, invadiam os oásis onde, quase sempre, ficam as Kasbahs. 
É estrada afora que fomos apreciando a simplicidade da vida actual do povo berbere. Nos povoados mais ou menos pequenos, a terra e o pó tudo invadem. Não há ruas empedradas. As casas térreas são cor de terra e as janelas escassas. É preciso virar as costas ao sol, criar ambientes escuros e mais frescos no seu interior. As aldeias misturam-se com a aridez e monotonia da paisagem, parece não ser possível a vida ali, mas as mulheres de trajes muito coloridos e rostos expressivos ou a fila de crianças muito pequenas, todas alinhadinhas nas suas túnicas brancas, caminhando em direcção a uma pequena madraça, são belíssimos sinais da adaptação do homem ao meio ambiente. A mesquita, caiada ou pintada, marca sempre presença em qualquer lugar por mais pequeno que seja.
Ao encontro das emblemáticas Kasbahs, percorrendo regiões extensas e áridas pela proximidade do deserto e onde a ilusão da miragem acontece, fomos surpreendidos com a beleza dos oásis que ultrapassaram, largamente, a ideia que tínhamos desta realidade. É assombrosa a dimensão do oásis do vale do rio Drâa. Subimos a uma pequena colina à entrada de Agdz para desfrutar de uma paisagem de beleza sem igual. De um lado a cidade rosada quase da cor dos penhascos envolventes, do outro, um extenso mar verde embutido no ocre num contraste a perder de vista. O imenso palmeiral que ladeia o rio é uma bênção para a sobrevivência das populações. Nele pratica-se uma agricultura intensiva: produtos hortícolas junto ao solo e, emergindo por entre estes, crescem as árvores de fruto, todos protegidos do sol pelas palmeiras de tâmaras que constituem grande fonte de riqueza.
Mas se há oásis, também há dunas por perto e aí fomos nós até Merzouga. Ficámos alojados no Auberge Café du Sud, implantado nas areias do deserto que se estendem até ali. Um saboroso chá de menta fez-nos as boas vindas bem ao jeito marroquino. Esperavam-nos as dunas de Erg Chebbi, assim como o guia, um tuaregue, agora como marinheiro em terra fazendo trabalhos para o turista, que nos levou a mergulhar num mar de areia que não é senão um grão nesse imenso deserto do Saara.
Há sempre, em nós, uma ideia romântica sobre as dunas ao pôr do sol que as tinge de uma tonalidade acobreada, excelente para uma fotografia. Mas o mais impressionante para mim, nesta pequena experiência, foi o silêncio absoluto que pairava sobre as enormes massas de areia, de curvas elegantemente suaves, produzidas pelo vento que, na hora deste encontro mágico, as abandonou completamente. Os dromedários, deitados nas areias e aguardando a sua carga para nos levar de volta, pareciam cúmplices, respeitando o momento de acalmia, de paz, de reconciliação.
As dunas ficaram para trás, mas não a aridez da paisagem nesta rota das Kasbahs. Sempre as fomos avistando aqui e acolá como marcos da cultura de um povo um pouco reservado ao primeiro contacto e nem sempre falando bem o francês, mas, no entanto, afável. Foi com a Kasbah de Amerhidil, em Skoura, de grandes dimensões e interesse cultural que encerrámos uma rota de encanto, de admiração pelas obras que o homem sempre consegue construir mesmo em condições bastante adversas.

Manuela Santos

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

  Lisboa de Outros Tempos
     
Alfama
Lisboa está  mais bonita. É certo que tem o sol e o Tejo como padrinhos que sempre a ampararam mesmo nos tempos de desolação do seu passado recente quando a incúria e a má gestão imobiliária lhe causaram feridas profundas, lhe amareleceram a alma. Mesmo quando as colinas de casario envelhecido, bolorento, tantas vezes enfeitado por grafitos coloridos que não  eram senão uns rabiscos desenvergonhados numa gargalha ao seu abandono, ao seu estado devoluto. Ou quando os lisboetas desertaram do seu centro histórico e o entregaram ao vazio dos fins de semana animado apenas pela comunidade africana na esquina do D. Maria. Ou até quando  a megalomania do Centro Comercial atirou o comércio da Baixa Lisboeta para um estado de flacidez e a ida a esta zona da cidade caiu para o ocasional. 
Lisboa agora está mais bonita. São tempos de mudança. Está mais colorida e renovada. Rejuvenesceu e  aconchega o nosso olhar em qualquer um dos seus miradouros. Presenteia-nos com as suas ruelas estreitas pintadas de fresco como donzelas em dias de baile de Santo António. Sei que ainda há muito por fazer e  nem me quero lembrar que há especulação imobiliária e que os turistas foram trazidos ou não pelas multinacionais deste ramo. Nem quero lembrar que foram os de fora que nos escolheram em vez de nós planearmos de forma equilibrada a sua vinda.   Não quero lembrar que floresceu um comércio desinteressante virado apenas para o turista. Não me incomoda que os velhos e pachorrentos amarelos da Carris tenham a concorrência dos tuk tuk.  Lisboa está mais bonita e eu quero desfrutá-la antes que seja tarde demais.