Turquia: Um Pot-pourri de Civilizações
Navegando
num cacilheiro pelas águas calmas do Bósforo como quem desliza pelo
Tejo lisboeta, o meu olhar equivocado procura o Terreiro do Paço, mas logo se
prende na magnífica arquitectura do Palácio Dolmabahçe erguido mesmo na margem deste
estreito que mais parece um imenso rio a dividir a cidade de Istambul pelos
dois continentes, Ásia e Europa, talvez querendo lembrar-lhe as diferenças
entre ambos. Longe disso! O Bósforo é antes uma grande artéria que corre pelo
coração da antiga Constantinopla, alimentando-a de raízes orientais e
ocidentais para que a sua cultura se revele única, intensa, inigualável. Constantemente
sulcado por frotas de cargueiros, vai impulsionando a economia turca e
distribuindo, diariamente, multidões em transporte marítimo que se deslocam para o
seu trabalho. Ainda sob os efeitos mágicos da
música de uma bağlama dedilhada com a mestria de um turco que ouvi lá para os
lados da Torre de Gálata qual Carlos Paredes em acordes
exóticos, contemplo, deslumbrada, a grandiosidade e beleza exterior do
Dolmabahçe, construído ao estilo europeu de finais do Século XIX. Os seus interiores ricamente decorados revelam, no entanto , o gosto de ricos sultões
rodeados por belas mulheres em airosas danças do ventre.
Envolvente
e apaixonante, a Turquia embriaga-nos, baralha-nos os sentidos. É certo que
sultões gorduchos, tapetes voadores e turcos conquistadores povoaram o meu
imaginário infantil, mas não é razão suficiente. Que mistério é este que paira
pelo ar nas ruas e ruelas de Istambul e, mesmo saindo para outros lugares,
persegue-nos, cola-se à nossa pele. Respira-se quando olhamos do alto da Torre
Gálata para uma cidade maravilhosa dourada pelo sol que vai tombando em cada
tarde que termina, admirando os numerosos minaretes qual agulhas espetadas num
céu alaranjado a essa hora, no seu papel de sentinelas do culto, sempre prontos a chamar os fiéis à oração. Será porque esse chamamento místico saído da voz de
qualquer um muezim que ecoa pelos altifalantes em todos os cantos da cidade
de Istambul e me surpreende no momento em que degusto um delicioso manjar
mediterrânico realçado por temperos mais orientais, me faz sentir um tanto
profana nestas terras do grande Mustafa Ataturk?
A
Turquia é mesmo surpreendente! Não é Ocidente mas também não é Oriente. É a
porta para o mundo das diferentes civilizações que marcaram para sempre o seu
território. Entro nos primórdios do cristianismo, apreciando a Casa da Virgem
onde, alegadamente, terá vivido com o apóstolo João após a crucificação de
Cristo e reparo que os fiéis em rituais tão próximos a Fátima, acendem também a
sua vela e rezam ao mesmo tempo que colocam as suas preocupações ou aflições
num pequeno papel que deixam num dos muros envolventes. Olho para estes rostos
sérios da solenidade e descubro culturas ocidentais e orientais a
surpreenderem-me nesta devoção comum. Relativamente próximo da Casa da Virgem,
o túmulo do apóstolo João pode ser visitado nas magníficas ruínas da Basílica
de São João, erguida por Justiniano, no século VI, na região de Éfeso. Os vestígios
da Civilização Romana são, na Turquia, de uma magnitude espectacular e Éfeso é
um bom exemplo disso, com a famosa Biblioteca de Celso integrada num vastíssimo
conjunto de ruínas desta importante cidade portuária greco-romana e um dos
berços da filosofia. O mar recuou e, hoje, Éfeso fica afastada do Mediterrâneo.
Se as manifestações do Cristianismo se cruzam com as do Império Romano,
Bizantino e Otomano em toda a Turquia, todas elas se vão homogeneizar numa
elegância perfeita e extremamente bela na grande mesquita Hagia Sophia de
Istambul, hoje transformada em museu. Santa Sofia é uma obra-prima da
arquitectura bizantina e espelho da História da Turquia. Os maravilhosos ícones
do culto ali praticado sob as três religiões, Católica Romana, Ortodoxa e Islâmica,
ao correr dos anos, expressos em toda a arquitectura interior, conferem-lhe um
clima místico que exerce, de algum modo, um poder sobre nós, intimidando-nos um
pouco até. No momento em que a visito, penso como seria o mundo se esta
magnífica catedral fosse aberta à prática religiosa dos três credos que outrora
ecoaram em cânticos e preces por aquelas enormes colunas de capitéis
rendilhados, subindo até às cúpulas e sabe Deus onde mais.
Mergulho
em rios de gente que percorre, tranquilamente, as ruas de Istambul, gozando
umas pequenas férias, consequência de dois feriados e do fim do Ramadão. A
magia continua! Por entre o vai e vem de tanta gente à minha volta, vou
observando as suas expressões, gestos, os sinais das suas vivências.
Deslocam-se quase sempre em numerosas famílias, constituídas maioritariamente
por mulheres e crianças sempre acompanhadas por um ou dois homens. A
diversidade do traje feminino cativa a minha atenção. Mesmo à minha frente
caminham mulheres todas vestidas de negro onde só o rosto parece espreitar a
vida. Mas já vejo outras, elegantemente vestidas em tons pastel, amarelo ou
rosa ou azul, mas todo o traje numa só
cor. Trazem gabardines completamente abotoadas, calças e lenço na cabeça embora
o calor aperte. Mais além, pequenos grupos de várias idades, provavelmente da
mesma família, de pele de um branco cerâmico e vestes em tecidos muito finos,
igualmente brancos, com lenço da mesma cor descendo sobre o rosto. Outras,
ainda, de lenços, blusas e saias de flores em cores garridas e em que nada
combina. Estou confusa! Serão todas elas turcas ou, algumas, apenas turistas
dos países vizinhos? Vejo, também, mulheres modernas, desenvoltas dentro das
suas jeans e com os penteados da moda, embora algumas também usem o tradicional
lenço. Deslocam-se sozinhas e seguem o seu caminho completamente
despreocupadas. Os homens turcos não se destacam pela indumentária que é
ocidental, mas antes pela sua gentileza. Se houver um único lugar vazio no
autocarro todos insistem para eu me sentar. Quando podem, não dispensam o
piropo à mulher europeia. Geralmente são os homens que mais trabalham em
contacto com os turistas e o seu habitual sorriso alarga-se ao meu teşekkür ederim (obrigado) que
certamente não tem a pronúncia correcta. A pesca parece ser um hobby masculino
de peso e, por isso, a Ponte Gálata, de uma ponta a outra, apresenta-se surpreendentemente
engalanada com um emaranhado de canas e anzóis pendurados sobre as águas do Corno de Ouro.
Hora de
entrar no Grande Bazar de Istambul. Ambiente alucinante! Gente rodopiando como
quem dança aos sons de um oud ou de uma bağlama que ecoam pelos corredores
labirínticos deste vasto bazar, anunciando botequins de instrumentos musicais
para mim desconhecidos. Por entre todo o rebuliço de comerciantes e compradores,
envolvidos num regateio aromatizado pelo cheiro das especiarias e couros que
penetram bem forte nas narinas, no meio do colorido de tantos objectos pois
aqui vende-se de tudo o que e possa imaginar, eis que me deparo com um
calígrafo no seu pequeno estaminé. Fico ali a observar a leveza do gesto, a
segurança da caligrafia para dali aparecer o meu nome ocidental cheio de
arabescos. Uma recordação que guardarei para sempre da mágica Turquia.
Manuela
Santos
Biblioteca de Celso |
Mercado das especiarias |
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