segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Dinamarca Rural

Espreitando por entre nuvens, um sol brincalhão de raios prateados, lança uma luz envolvente e acolhedora, sobre toda a paisagem que alcançamos desafogadamente, em cada curva da estrada. Não é só consequência do início do Outono  é, também,  pela latitude na qual nos encontramos. Aqui e acolá, turbinas eólicas, numa rotação frenética, parecem agulhas bordando de verde a floresta que remata as numerosas quintas a perder de vista. Há campos em repouso, outros acabadinhos de lavrar para mostrar uma terra castanho escuro abençoada pela maresia do Mar do Norte ou pela chuva que mesmo no Verão, sempre vai caindo. A passarada esvoaçando rasteiramente, não larga esta terra fértil e procura os bicharocos para a sua refeição matinal. Há campos cultivados e, noutros, já os rolos de palha, espalhados pela planície ou pelas pequenas colinas, aguardam armazenamento. No inverno o clima é agreste e às vacas que hoje aproveitam bem o dia de sol, nunca lhes pode faltar alimento. A planície que ladeia o nosso caminho parece uma manta de retalhos de cores  variadas, retalhos de seda. Tudo está tão bem tratado e feito com rigor. Não existe lixo nem pedras fora do lugar. Alfaias agrícolas velhas ou abandonadas num canto qualquer, por aqui é coisa que não se vê. Temos saudade dos campos amarelo vivo da flor da mostarda mas isso é na  Primavera, agora a beleza campestre mudou para tons acastanhados mas de modo nenhum nos deixa indiferentes. O passeio pela Dinamarca é sempre prazeroso.
Avançamos pela Jutlândia, uma das regiões dinamarquesas de pequenas cidades acolhedoras e de uma calma contagiante. É neste estado de espírito que chegamos a Ribe para admirar o seu centro histórico que tal como em muitas outras pequenas localidades, independentemente da maior ou menor riqueza patrimonial, se encontra bem preservado e harmoniosamente integrado no seu núcleo urbano.
Ribe, a cidade mais antiga da Dinamarca e fundada no ano 700, foi um grande porto Viking. As marcas do seu passado ali estão disponíveis para disfrute de todos. Inúmeras casas protegidas enquanto património inestimável, conferem às pequenas ruas medievais um charme de contos de fada. Fazem-nos lembrar os livros de Hans Christian Andersen, célebre autor de histórias para crianças que viveu em Odense, não muito longe dali. Como ponto de confluência espiritual, está a Catedral de Nossa Senhora. De singular arquitectura, resultante de reconstruções e ampliações feitas em séculos distintos, apresenta traços românicos, góticos, estruturas modernas e mesmo elementos decorativos contemporâneos. É, sem dúvida, muito bonita. Do alto da sua Torre pode ser apreciada toda a paisagem bucólica  que nos acompanhou neste dia de passeio. A acariciar e respeitar  todo este cenário, temos os dinamarqueses.  Pessoas bastante afáveis que, quando abordadas, sempre mostram um sorriso, mas distantes e sempre discretas. Não nos sentimos observados sendo estas terras de turismo mais interno do que externo. Se cuidam com grande esmero o seu espaço, se as suas vidas se desenrolam num espírito de solidariedade, também os seus mortos não  são esquecidos. Oferecem-lhes jardins mimosos, extremamente bem cuidados, onde apenas pequenas cruzes de pedra erguidas sobre a relva, nos fazem lembrar o significado deste lugar.
Para os apreciadores de recriação histórica de qualidade, uma constante na Dinamarca, existe, bem próximo de Ribe, o Ribe Viking Center, aberto todo o Verão com apresentação de vários eventos relacionados com o período Viking.
É tão bom viajar pela Dinamarca!
Manuela Santos

domingo, 25 de fevereiro de 2018


Kasbahs, a Poesia da Terra

  
Marrocos e as suas incríveis Kasbahs há muito tempo que alimentavam os nossos projectos de viagem. Rumámos no seu encalço, até ao sul do país, animados com a perspectiva de, finalmente, podermos admirar essas enigmáticas casas acasteladas, construídas em adobe, da cor da terra como se esta se tivesse erguido num devaneio poético. Que segredos encerram? Certamente memórias das emoções, dos dramas familiares, das vidas de sobrevivência numa terra onde o sol é implacável. 
Partindo de Marraquexe onde alugámos carro depois de um regateio apaixonado, aventurámo-nos pela estrada que nos levaria por Ouarzazate até Zagora, passando depois a Tinfou e Merzouga, bem próximas da fronteira argelina e já às portas do deserto, para voltarmos novamente a Ouarzazate com Erfoud pelo caminho. Um percurso quase circular, onde as Kasbahs nos vão surpreendendo ao virar a curva da estrada ou então sobressaindo por entre o casario.
Depois da travessia lenta das montanhas do Atlas, o nosso pasmo inicia-se com o admirável   Aït Ben Haddou. Esta Ksar, composta por várias Kasbahs circundadas por muralha, empoleiradas numa colina com as palmeiras e o rio a seus pés, é simplesmente deslumbrante. Começámos aqui a aprender um pouco sobre a vida dos antigos berberes. Que construíram estas casas tipo fortalezas, para se abrigarem não só de um clima demasiado agreste, como também para se defenderem dos nómadas do deserto que, no final das colheitas, invadiam os oásis onde, quase sempre, ficam as Kasbahs. 
É estrada afora que fomos apreciando a simplicidade da vida actual do povo berbere. Nos povoados mais ou menos pequenos, a terra e o pó tudo invadem. Não há ruas empedradas. As casas térreas são cor de terra e as janelas escassas. É preciso virar as costas ao sol, criar ambientes escuros e mais frescos no seu interior. As aldeias misturam-se com a aridez e monotonia da paisagem, parece não ser possível a vida ali, mas as mulheres de trajes muito coloridos e rostos expressivos ou a fila de crianças muito pequenas, todas alinhadinhas nas suas túnicas brancas, caminhando em direcção a uma pequena madraça, são belíssimos sinais da adaptação do homem ao meio ambiente. A mesquita, caiada ou pintada, marca sempre presença em qualquer lugar por mais pequeno que seja.
Ao encontro das emblemáticas Kasbahs, percorrendo regiões extensas e áridas pela proximidade do deserto e onde a ilusão da miragem acontece, fomos surpreendidos com a beleza dos oásis que ultrapassaram, largamente, a ideia que tínhamos desta realidade. É assombrosa a dimensão do oásis do vale do rio Drâa. Subimos a uma pequena colina à entrada de Agdz para desfrutar de uma paisagem de beleza sem igual. De um lado a cidade rosada quase da cor dos penhascos envolventes, do outro, um extenso mar verde embutido no ocre num contraste a perder de vista. O imenso palmeiral que ladeia o rio é uma bênção para a sobrevivência das populações. Nele pratica-se uma agricultura intensiva: produtos hortícolas junto ao solo e, emergindo por entre estes, crescem as árvores de fruto, todos protegidos do sol pelas palmeiras de tâmaras que constituem grande fonte de riqueza.
Mas se há oásis, também há dunas por perto e aí fomos nós até Merzouga. Ficámos alojados no Auberge Café du Sud, implantado nas areias do deserto que se estendem até ali. Um saboroso chá de menta fez-nos as boas vindas bem ao jeito marroquino. Esperavam-nos as dunas de Erg Chebbi, assim como o guia, um tuaregue, agora como marinheiro em terra fazendo trabalhos para o turista, que nos levou a mergulhar num mar de areia que não é senão um grão nesse imenso deserto do Saara.
Há sempre, em nós, uma ideia romântica sobre as dunas ao pôr do sol que as tinge de uma tonalidade acobreada, excelente para uma fotografia. Mas o mais impressionante para mim, nesta pequena experiência, foi o silêncio absoluto que pairava sobre as enormes massas de areia, de curvas elegantemente suaves, produzidas pelo vento que, na hora deste encontro mágico, as abandonou completamente. Os dromedários, deitados nas areias e aguardando a sua carga para nos levar de volta, pareciam cúmplices, respeitando o momento de acalmia, de paz, de reconciliação.
As dunas ficaram para trás, mas não a aridez da paisagem nesta rota das Kasbahs. Sempre as fomos avistando aqui e acolá como marcos da cultura de um povo um pouco reservado ao primeiro contacto e nem sempre falando bem o francês, mas, no entanto, afável. Foi com a Kasbah de Amerhidil, em Skoura, de grandes dimensões e interesse cultural que encerrámos uma rota de encanto, de admiração pelas obras que o homem sempre consegue construir mesmo em condições bastante adversas.

Manuela Santos

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

  Lisboa de Outros Tempos
     
Alfama
Lisboa está  mais bonita. É certo que tem o sol e o Tejo como padrinhos que sempre a ampararam mesmo nos tempos de desolação do seu passado recente quando a incúria e a má gestão imobiliária lhe causaram feridas profundas, lhe amareleceram a alma. Mesmo quando as colinas de casario envelhecido, bolorento, tantas vezes enfeitado por grafitos coloridos que não  eram senão uns rabiscos desenvergonhados numa gargalha ao seu abandono, ao seu estado devoluto. Ou quando os lisboetas desertaram do seu centro histórico e o entregaram ao vazio dos fins de semana animado apenas pela comunidade africana na esquina do D. Maria. Ou até quando  a megalomania do Centro Comercial atirou o comércio da Baixa Lisboeta para um estado de flacidez e a ida a esta zona da cidade caiu para o ocasional. 
Lisboa agora está mais bonita. São tempos de mudança. Está mais colorida e renovada. Rejuvenesceu e  aconchega o nosso olhar em qualquer um dos seus miradouros. Presenteia-nos com as suas ruelas estreitas pintadas de fresco como donzelas em dias de baile de Santo António. Sei que ainda há muito por fazer e  nem me quero lembrar que há especulação imobiliária e que os turistas foram trazidos ou não pelas multinacionais deste ramo. Nem quero lembrar que foram os de fora que nos escolheram em vez de nós planearmos de forma equilibrada a sua vinda.   Não quero lembrar que floresceu um comércio desinteressante virado apenas para o turista. Não me incomoda que os velhos e pachorrentos amarelos da Carris tenham a concorrência dos tuk tuk.  Lisboa está mais bonita e eu quero desfrutá-la antes que seja tarde demais.

domingo, 8 de outubro de 2017


O Charme Medieval de Lübeck


     Emoldurada pelo rioTrave ao norte da Alemanha e próximo da fronteira com a Dinamarca, a adorável cidade de Lübeck pode chamar, a si, o estatuto de cidade ilha, perto do mar, no entanto resguardada da azáfama do seu porto marítimo que fica um pouco mais distante.
Serenidade parece ter sido a opção desta cidade depois de um passado glorioso enquanto foi a capital da famosa Liga Hanseática, uma aliança económica entre várias cidades do norte europeu que controlava o comércio nos mares do Norte e Báltico, durante a Idade Média, ou de um passado de tragédia com a destruição da cidade nos finais da Segunda Guerra Mundial. Bombardeada pela RAF, ficou arrasada com os numerosos incêndios subsequentes, alimentados pela madeira de que eram constituídas, essencialmente, as construções de uma cidade que teve a sua origem no Séc. XII. Restaram as estruturas de tijolo e belas  fachadas de muitos edifícios entretanto tão bem recuperados. Lübeck é, actualmente, uma cidade de grande interesse cultural. Com turismo quanto baste, pelo menos na primeira semana de Setembro em que a visitei, apresenta-se tranquila, fácil de percorrer a pé pelo turista, sem necessidade de recorrer a qualquer transporte público. A vida dos residentes desenrola-se com a calma própria das cidades de média dimensão em paralelo com um discreto acolhimento aos visitantes. Lübeck possui um fabuloso património de arquitectura gótica de tijolo que lhe granjeou a eleição de Património da Humanidade pela UNESCO. De rua em rua, sempre presenteada com lindas fachadas de causar admiração, os pináculos verdes em contraste com a cor do tijolo das torres da Catedral e da formosa e imperdível Igreja de Santa Maria, vão-me servindo de guia neste itinerário de charme que a cidade oferece. Mas o pasmo não fica por aqui! A estranha arquitectura do edifício da câmara municipal, a Rathaus, mais uma vez me fez estar de cabeça levantada, ou o fantástico Heiligen Geist Hospital, um hospital medieval onde foi possível visitar apenas o bonito átrio, embora o edifício, por si só, seja mais que suficiente para ser incluído na lista dos vários ex-líbris a guardar  numa bela fotografia.
    Neste deambular pelas ruas mais estreitas de Lübeck onde ocorrem, por vezes, magníficas concentrações de edifícios em tijolo, é tão fácil imaginar o rebuliço mercantil do tempo da Liga Hanseática: As pipas da cerveja artesanal dos monges Beneditinos de Weihenstephan a caminho do porto de onde seguiam para outros destinos; as mercadorias várias que entravam e saíam da cidade como os tecidos de lã, as sedas vindas do oriente, os cereais, o sal, tão bem representadas no Museu da Liga Hanseática; O movimento dos almocreves pelas admiráveis portas da cidade, a Holstentor e a Burgtor de arquitectura muito interessante. Imaginamos, também, a Lübeck do Séc XIX como o cenário perfeito para os Buddenbrooks, personagens do romance com o mesmo nome de Thomas Mann, um dos filhos ilustres desta cidade charmosa e romântica.
O esplendor mercantil de Lübeck foi-se dissipando no tempo. Hoje, ela está voltada para um turismo cultural gerido com prudência e tem os famosos e deliciosos doces de massapão a disputarem um lugar cimeiro no seu actual comércio.

Manuela Santos




segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Gosto de Copenhaga


Há cidades que nos causam espanto e admiração logo à primeira vista, seja pela imponência arquitectónica, pela ousadia ou pelo seu carisma. Copenhaga talvez se enquadre nesta última situação. É uma cidade harmoniosa que tem sabido conjugar arquitectura antiga com a contemporânea. Cada uma no seu espaço na cidade, sem desequilíbrios estéticos. Preserva tudo o que é tradicional e investe também no que existe de mais moderno.  E tem como companhia a água dos canais onde a cidade se espelha com alegria nos dias de sol menos abundantes que a sul da Europa e aproveitados ao máximo pelos dinamarqueses. Se o sol é preguiçoso por aquelas paragens lá estão as esplanadas equipadas com aquecedores e mantinhas nas costas das cadeiras. Copenhaga é amigável. Não nos sufoca. Os edifícios atingem mais ou menos os seis andares com excepção das zonas mais modernas onde sobem um pouco mais. Das avenidas mais largas às mais pequenas o pequeno comércio prolifera, animando bastante a capital da Dinamarca. Existem lojas de todo o tipo incluindo as de confecção de roupa por medida, modestas ou mais luxuosas, o que me surpreendeu. O comércio de bicicletas é uma constante ou não fosse este país o paraíso da bicicleta. É ver uma grande parte da população pedalando com destreza de fazer inveja. São autênticos enxames que deslizam pelas vias próprias, sempre no sentido do tráfego. Transportam as crianças em triciclos com a mesma destreza e os mais velhos ainda pedalam com regularidade. A bicicleta é, realmente, um meio de transporte privilegiado e, aliado à excelente organização dos transportes públicos, fazem de Copenhaga uma metrópole pouco ruidosa e pouco poluída. A cidade da filosofia de vida hygge, é acolhedora, solidária, multicultural, respeita a diferença, bem visível no bairro Christiania onde vivem cidadãos que preferem um modo de vida alternativo. Temos a sensação de não existir qualquer tipo de ostentação nesta cidade escandinava e provavelmente por isso, as bonitas igrejas, normalmente em arquitectura de tijolo, são bem simples no seu interior. Ou é o contrário? Será a prática religiosa que influencia a vida social? Vale a pena visitar Sankt Petri Kirke, uma pequena igreja medieval, com as suas invulgares capelas sepulcrais que, mediante solicitação, são mostradas aos visitantes.


Copenhaga parece ser gerida com pragmatismo o que não invalida o investimento na cultura e os próprios dinamarqueses gostam de manter e preservar as suas memórias. Quem sair para fora da cidade, viajando um pouco pelo país, pode visitar os numerosos centros de recriação histórica com a participação voluntária de várias famílias ou outras pessoas que levam com rigor histórico toda a encenação, sobretudo da Idade Média. Construíram minúsculas aldeias no meio do campo, onde mulheres costuram manualmente as próprias roupas medievais que usam, os homens exercem ofícios de carpinteiro, de ferreiro, a arte da guerra e todos ali trabalham numa perspectiva cénica e didáctica para o visitante. Voltando a Copenhaga, onde são numerosos os museus, o meu favoritismo vai, sem dúvida, para o imperdível Nationalmuseet. Nele podemos viajar através dos tempos da pré-história até ao Séc. XX. Os milhares de objectos do quotidiano de rara beleza e singularidade ocupam-nos bem umas três horas em encantamento.


Mas a cidade viking também tem os seus ex-líbris com destaque para a Pequena Sereia que é mesmo pequena, ou o Amalienborg, palácio residencial da família real e, numa das praças mais bonitas, o Copenhagen City Hall, construído em tijolo com detalhes dourados na sua fachada. Imperdível é, também, o Castelo Rosenborg, uma pequena jóia do Séc. XVII. Caminhando que é a melhor forma de viver a cidade, ela sempre nos surpreende, algures, com belos edifícios em tijolo, antigos ou os mais modernos que continuaram esta tradição. É bom vaguear pelas ruas planas, caminhar sem atropelos e, se não se quiser gastar dinheiro num passeio de barco pelo canal, destinado a turistas, pode-se sempre usar o passe dos transportes públicos e embarcar num bus-barco. De porto em porto fomos admirando a ainda mais bela Copenhaga, iluminada pelo sol, descobrindo pontos de interesse tal como o diamante negro, nome pelo qual é conhecida a Biblioteca Nacional, devido à sua arquitectura ultra moderna. Gosto de Copenhaga, mas é uma cidade cara para nós portugueses.

Manuela Santos






sábado, 17 de junho de 2017


Marraquexe  Aqui  Tão Perto


 Em pouco mais de hora e meia aterrámos na bela cidade de Marraquexe. Longe do norte marroquino mais mediterrânico, a cidade rosa e ocre onde a vida parece acontecer de forma caótica, revelou-se surpreendente.
Ruelas e becos atravancados de lojas com tudo o que se possa imaginar estar à venda, com tudo o que o ser humano precisa e não precisa, com souvenirs made in Marrocos ou made in China? Viemos a saber, mais tarde, dito por um funcionário do Centro de Artesanato de Ouarzazate que, nos Souk de Marrocos, muitos dos objectos considerados tradicionais, são fabricados na China. Numa aventura pelo Souk, quase espremidos pelas dezenas de motorizadas que nos serpenteavam, pelos transeuntes locais que caminhavam sem vacilar, pelo convite ao regateio numa compra que não nos apetecia fazer, eram muitos os motivos que captavam a nossa atenção. Mas ela foi, sem dúvida, para a beleza das portas minuciosamente trabalhadas em metal ou madeira, umas pequenas obras de arte escondidas por entre as lojas  da tralha comercial e, quando abertas, nos ofereceram uma visão deslumbrante da arquitectura dos pátios interiores, ricos de azulejos e arabescos de gesso que decoram colunas e pórticos numa estética comum a toda a arte islâmica.

De vista regalada sim, era caso para isso, mas os nossos sentidos também estavam bem  despertos pelos odores que pairavam no ar, tão diferentes do que estávamos habituados.  De comida, de fruta fresca, dos orégãos e de menta que de tão intensos e agradáveis nos apeteceu trazer para casa. E ainda tínhamos o cheiro a metal trabalhado pelos artesãos, o mofo do casario antigo, o monóxido de carbono das benditas motos, o suor de gente que trabalha em climas muito quentes, o chão molhado para acalmar o pó, o cheiro a perfume de turistas acabadinhos de chegar. Por fim, entrámos na Praça Jemaa el-Fna.  Julgávamos já ter visto de tudo à venda mas estávamos enganados. Ali mesmo à nossa frente, uma banca com dentes soltos e outros alinhados em próteses de vários tamanhos, cobertos de pó, à espera de clientes. Sorrimos. Estávamos em Marraquexe. A praça é o centro de tudo. Há música tradicional,  dança,  faquires, músicos, encantadores de serpentes e muito mais, mas também se vendem comida e bebidas, vestuário. É à  noite que a Praça Jemaa el-Fna fica ao rubro e por isso as famílias marroquinas vestem a sua melhor roupa, passeiam e fazem as suas compras.

A cidade rosa oferece-nos algumas preciosidades patrimoniais entre elas os Tombeaux  Saadiens, a mesquita Koutoubia ou o Palácio da Bahia, onde grupos de turistas japoneses de máquina fotográfica em punho, pareciam querer fazer concorrência aos marroquinos e não nos darem um minuto de sossego. Na realidade não fomos a Marraquexe para ficar sossegados e o que nos apaixonou nesta cidade foi, sem dúvida, a sua imensa actividade na rua. Se nas ruelas antigas e estreitas era preciso esgueirarmo-nos por entre o vaivém de motos e transeuntes, fora do Souk, no automóvel alugado, foi exactamente a mesma coisa. Carros, motos,  carroças puxadas por burros,  todos se cruzavam desordenadamente à nossa volta, numa dança alucinante na qual os peões também deram um ar de sua graça. Não foram os encantadores  de serpentes da Praça Jemaa el-Fna que produziram sobre nós o encantamento inesperado. Foi esta cidade irrequieta onde a vida acontece numa exposição diária espontânea e simultaneamente calculada para o turista ver.


sexta-feira, 26 de maio de 2017

 No Deserto Também Há Uma Biblioteca



Percorríamos a rota dos Kasbahs para admirar essa fantástica arquitectura de terra que se funde com o próprio chão numa cor de argila, por vezes bastante intensa. Os povos berberes souberam dar-lhes a elegância perfeita para uma terra árida em que a única cor discordante é o verde do oásis. Entretanto tínhamos ouvido falar de uma biblioteca mesmo às portas do deserto. Movida pela curiosidade profissional e de viajante e com o consenso dos meus companheiros de viagem, rumámos até Tamegroute. Esta vila, outrora de grande importância no mapa marroquino, fica bem nos confins de Marrocos pois a estrada terminará dali a umas dezenas de quilómetros, quase na fronteira com a Argélia com a qual nem estabelece ligação. Um pouco para trás fica o fértil Vale do Drâa. Para trás fica, também, o seu esplendor de vila com destaque na antiga rota do Tombuctu como grande centro religioso de Marrocos. À nossa chegada ao complexo religioso, a Zauia Naciria, salta-nos ao caminho um guia espontâneo daqueles que os há por todos os cantos do país que depois dos serviços prestados, tentam regatear como melhor sabem o que à partida era gratuito. H Kim, o nosso guia, vai-nos conduzindo pelo complexo religioso, um pouco degradado, em cujos claustros interiores se arrastam pelo chão dia e noite, fazendo do sítio a sua casa, doentes incuráveis à espera de um milagre. H Kim fala-nos do fundador da Zauia Naciria, um teólogo sufista e médico que se interessou pelas doenças mentais. Agora percebemos a esperança no milagre.



A mesquita e o túmulo do fundador estão vedados aos turistas que por ali vão pingando. Apenas aparecem em pequenos grupos ou solitários que se dirigem para as dunas  de Tinfou. Finalmente H Kim abre a porta da biblioteca. Deparamo-nos com um ancião de túnica imaculadamente branca, bastante decrépito, sentado numa cadeira de rodas. É o bibliotecário que desde sempre ali trabalhou.  Podemos admirar, dentro das enormes vitrines embora a sala seja pequena para a noção que temos de uma biblioteca, maravilhosos manuscritos iluminados do séc. XVII em perfeito estado de conservação. Espanta-nos a falta de protecção e de condições ambientais. É o vento seco do deserto que os conserva, explica-nos H Kim. Com muita pena minha não podemos tirar fotos, é compreensível. Actualmente só os alunos da pequena madraça ali mesmo ao lado frequentam a biblioteca. Nos tempos áureos da Zauia Naciria, até do Mali e do Níger vinham alunos para aprender os ensinamentos do Corão. De facto entre a população desta aldeia é visível a presença de bastantes habitantes negros ao contrário de outras zonas de Marrocos. A visita à biblioteca terminou, seguimos com o nosso guia para uma outra ao centro de olaria, mas a biblioteca com belos tesouros, num lugar tão improvável, tão árido, sem ruas pavimentadas, onde o pó tudo invade, não me saiu da memória.